Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, presentado por seu Procurador-Geral de Justiça, José Eduardo Ciotola Gussem, com endereço funcional na Avenida Marechal Câmara nº 370, Centro, Rio de Janeiro, vem, com fundamento nos arts. 116 e 117 do Regimento Interno do E. Conselho Nacional do Ministério Público, oferecer a presente Reclamação para Preservação da Autonomia do Ministério Público em face da Procuradora-Geral da República, Raquel Elias Ferreira Dodge, pelos motivos a seguir expostos. Breve escorço dos fatos No dia 14 de março de 2018, por volta das 21h30, o Brasil e o mundo ficaram estarrecidos com o assassinato de Marielle Franco, vereadora da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, e do seu motorista, Anderson Gomes. Uma assessora, que também estava no local, sobreviveu ao atentado. As notícias iniciais davam conta de que a vereadora retornava de um evento na Lapa quando seu carro foi interceptado por criminosos, que dispararam em direção ao interior do veículo. A parlamentar foi atingida na cabeça por 4 (quatro) 1 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro tiros, e o seu motorista por 3 (três) tiros, na lateral das costas. A assessora se feriu com os estilhaços. Os atiradores nada levaram. No dia imediato aos fatos foi instaurado o Inquérito Policial nº 901-00385/2018, pela Delegacia de Homicídios (doc. 1). A principal linha de investigação da Delegacia de Homicídios (como divulgado pela imprensa, pois a investigação tramita em sigilo) é a de execução. Até o momento, já se apurou que: (1) por volta das 19h00, a vereadora Marielle chegou à Casa das Pretas, na Rua dos Inválidos, na Lapa, para mediar um debate promovido pelo PSOL com jovens negras; (2) segundo imagens obtidas pela Polícia Civil, um veículo modelo Cobalt com placa de Nova Iguaçu, Município da Baixada Fluminense, estava parado próximo ao local; (3) quando a parlamentar chegou, um homem saiu do carro, passando a falar ao celular; (4) por volta das 21h00, a vereadora deixou o local, acompanhada pela assessora e o motorista Anderson, sendo que, pouco depois, um Cobalt começou a seguir o veículo de Marielle; (5) no meio do trajeto, outro veículo, de características ainda não divulgadas, se juntou ao Cobalt na perseguição ao veículo de vereadora; (6) por volta das 21h30, na Rua Joaquim Paralhes, no Estácio, um dos veículos emparelhou com o carro da vereadora, dali sendo desferidos 13 disparos, sendo que 9 acertam a lataria e 4 o vidro, daí resultando as mortes de Marielle e de Anderson; (7) a arma que atingiu as vítimas foi uma pistola 9 mm, e os tiros foram disparados a uma distância de 2 metros; (8) a Polícia Civil recuperou 9 cápsulas no local do crime e descobriu que a munição pertencia a um lote vendido para a Polícia Federal de Brasília em 2006; (9) a Polícia Civil também vai analisar o uso de celulares nos momentos que antecederam o crime, sendo que existem 26 antenas de celulares, de cinco operadoras de telefonia, na região onde a vereadora e o motorista foram executados, cujos dados já foram enviados à Polícia Civil. 2 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro Os assassinatos da vereadora e do motorista repercutiram em todos os segmentos da sociedade. No dia seguinte aos crimes (15/03/2018), a ProcuradoraGeral da República Raquel Dodge divulgou que estudava pedir a federalização das investigações sobre as mortes (doc. 2). Em 15/03/2018, às 14h34, a ProcuradoraGeral da República determinou a abertura do Procedimento Preparatório de Incidente de Deslocamento de Competência nº 1.00.000.005024/2018-37, na Procuradoria Geral da República, para analisar o caso (doc. 3). A Procuradora-Geral da República também esteve no Rio de Janeiro na quinta-feira (15), onde participou de reunião para acompanhar os trabalhos sobre a apuração dos assassinatos da parlamentar e do motorista. Naquela ocasião, disse que seu gabinete havia instaurado um monitoramento das investigações que estão sendo feitas e a federalização do caso também estava sendo avaliada, embora a expectativa fosse a de que tal medida não seria necessária (doc. 4). Na sexta-feira, dia 16/03/2018, a Procuradora-Geral da República afirmou que a federalização da investigação do assassinato da vereadora do PSOL e do motorista Anderson Gomes ainda não estava decidida, mas a só instauração do procedimento preparatório já serviria de “estímulo” às autoridades locais. A declaração foi feita durante a reunião de trabalho das equipes da Lava Jato, em Porto Alegre (doc. 5). Por meio de nota, a reclamada também informou ter feito solicitação formal à Polícia Federal para que adotasse providências para investigar o assassinato (doc. 6). Em 16 de março de 2018, o Procurador-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro recebeu o ofício nº 30/2018 – SDHDC/GABPGR, da Procuradora-Geral da República, comunicando a designação de cinco Procuradores da República para “fins de instrução do Procedimento Preparatório de Incidente de Deslocamento de 3 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro Competência - PPIDC nº 1.00.000.005024/2018-37 (doc. 7). Integram a equipe os procuradores da República Marcelo de Figueiredo Freire e Orlando Monteiro Espíndola da Cunha, Paulo Henrique Ferreira Brito, José Maria de Castro Panoeiro e Eduardo Santos Oliveira Benones. A partir dessa narrativa, realizada de modo direto e objetivo, será possível constatar, nas linhas que seguem, a prática de atos que colocam em risco a autonomia do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e a própria higidez da federação. Do indevido deslocamento de competência A Emenda Constitucional nº 45/2004 inseriu, em nossa ordem constitucional, o denominado incidente de deslocamento de competência. Tratase de ação cível, de competência originária do Superior Tribunal de Justiça e com legitimidade exclusiva do Procurador-Geral da República, passível de ser ajuizada “nas hipóteses de graves violações aos direitos humanos”, tendo por objetivo “assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte.” Esse incidente, que pode ser instaurado em qualquer fase do inquérito ou processo, conforme dispõe o art. 109, § 5º, da Constituição da República, caso seja acolhido, terá como efeito o deslocamento da competência para a Justiça Federal, nos termos do inciso V-A do mesmo preceito. Em razão da abertura semântica dos conceitos empregados pela reforma constitucional, foi natural a existência de certa incompreensão em relação à ratio essendi do novel instituto, cuja funcionalidade não é a de estabelecer uma ruptura do pacto federativo, mas, sim, assegurar a preeminência dos direitos humanos. 4 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro Essa incompreensão ficou bem nítida por ocasião do julgamento do IDC nº 1/PA (doc. 8), ocasião em que o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a inépcia da petição inicial ajuizada pelo Procurador-Geral da República, já que não fora observado o princípio da subsidiariedade. Em outras palavras, o deslocamento da competência para a Justiça Federal, parafraseando Hugo Grotius, é uma espécie de última ratio, somente invocável quando demonstrada a ineficiência dos órgãos estaduais. Eis a ementa do acórdão: “1. Todo homicídio doloso, independentemente da condição pessoal da vítima e/ou da repercussão do fato no cenário nacional ou internacional, representa grave violação ao maior e mais importante de todos os direitos do ser humano, que é o direito à vida, previsto no art. 4º, nº 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário por força do Decreto nº 678, de 6/11/1992, razão por que não há falar em inépcia da peça inaugural. 2. Dada a amplitude e a magnitude da expressão ‘direitos humanos’, é verossímil que o constituinte derivado tenha optado por não definir o rol dos crimes que passariam para a competência da Justiça Federal, sob pena de restringir os casos de incidência do dispositivo (CF, art. 109, § 5º), afastando-o de sua finalidade precípua, que é assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil sobre a matéria, examinando-se cada situação de fato, suas circunstâncias e peculiaridades detidamente, motivo pelo qual não há falar em norma de eficácia limitada. Ademais, não é próprio de texto constitucional tais definições. 3. Aparente incompatibilidade do IDC, criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, com qualquer outro princípio constitucional ou com a sistemática processual em vigor deve ser resolvida aplicando-se os princípios da proporcionalidade e da 5 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro razoabilidade. 4. Na espécie, as autoridades estaduais encontram-se empenhadas na apuração dos fatos que resultaram na morte da missionária norte-americana Dorothy Stang, com o objetivo de punir os responsáveis, refletindo a intenção de o Estado do Pará dar resposta eficiente à violação do maior e mais importante dos direitos humanos, o que afasta a necessidade de deslocamento da competência originária para a Justiça Federal, de forma subsidiária, sob pena, inclusive, de dificultar o andamento do processo criminal e atrasar o seu desfecho, utilizando-se o instrumento criado pela aludida norma em desfavor de seu fim, que é combater a impunidade dos crimes praticados com grave violação de direitos humanos. 5. O deslocamento de competência – em que a existência de crime praticado com grave violação aos direitos humanos é pressuposto de admissibilidade do pedido – deve atender ao princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), compreendido na demonstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do Estadomembro, por suas instituições, em proceder à devida persecução penal. No caso, não há a cumulatividade de tais requisitos, a justificar que se acolha o incidente. 6. Pedido indeferido, sem prejuízo do disposto no art. 1º, III, da Lei nº 10.446, de 8/5/2002” (STJ, Terceira Seção, IDC nº 1/PA, Min. Arnaldo Esteves Lima, j. em 08/06/2005, DJ de 10/10/2005). A respeito dos requisitos que devem estar presentes para o deslocamento de competência, o voto do relator é mais que didático, tendo norteado, desde então, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Lê-se no seu voto: 6 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro “Além dos dois requisitos prescritos no § 5º do art. 109 da CF, quais sejam, (a) grave violação a direitos humanos e (b) assegurar o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais, é necessário, ainda, a presença de terceiro requisito, (c) a incapacidade (oriunda de inércia, negligência, falta de vontade política, de condições pessoais, materiais etc.) de o Estado-membro, por suas instituições e autoridades, levar a cabo, em toda a sua extensão, a persecução penal. Tais requisitos – os três – hão de ser cumulativos, o que parece ser de senso comum, pois do contrário haveria indevida, inconstitucional, abusiva invasão de competência estadual por parte da União Federal, ferindo o Estado de Direito e a própria federação, o que certamente ninguém deseja, sabendo-se, outrossim, que o fortalecimento das instituições públicas – todas, em todas as esferas – deve ser a tônica, fiel àquela asserção segundo a qual, figuradamente, ‘nenhuma corrente é mais forte do que o seu elo mais fraco’. Para que o Brasil seja pujante, interna e externamente, é necessário que as suas unidades federadas – Estados, DF e Municípios –, internamente, sejam, proporcionalmente, também fortes e pujantes. (...) Destarte, mesmo se fazendo presentes os dois requisitos previstos no § 5º do art. 109 da CF, a ausência do terceiro elemento que lhe é naturalmente implícito, para nós, afasta a sua concreta aplicação e, a par disso, coloca o Brasil ao abrigo da eventual submissão a julgamentos por Cortes Internacionais, porque ele não poderá ser acusado de ter-se omitido na investigação, julgamento e punição dos culpados, sempre fiel ao princípio da legalidade, pois um seu Estado-membro, com seu apoio, atua adequadamente em tal sentido”. O objetivo, portanto, é o de preservar os direitos humanos sem comprometer a higidez da federação. Outro aspecto digno de nota é o de que o 7 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro próprio acórdão extremou a cognominada “federalização da competência” da possível atuação da Polícia Federal na elucidação do crime. Tal atuação, é importante frisar, encontra-se legalmente prevista na Lei nº 10.446/2002 e independe de autorização de qualquer órgão jurisdicional. Eis o inteiro teor desse diploma normativo, verbis: Dispõe sobre infrações penais de repercussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme, para os fins do disposto no inciso I do § 1o do art. 144 da Constituição. Art. 1º - Na forma do inciso I do § 1o do art. 144 da Constituição, quando houver repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme, poderá o Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, sem prejuízo da responsabilidade dos órgãos de segurança pública arrolados no art. 144 da Constituição Federal, em especial das Polícias Militares e Civis dos Estados, proceder à investigação, dentre outras, das seguintes infrações penais: I – seqüestro, cárcere privado e extorsão mediante seqüestro (arts. 148 e 159 do Código Penal), se o agente foi impelido por motivação política ou quando praticado em razão da função pública exercida pela vítima; II – formação de cartel (incisos I, a, II, III e VII do art. 4º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990); e III – relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte; e IV – furto, roubo ou receptação de cargas, inclusive bens e valores, transportadas em operação interestadual ou internacional, quando 8 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro houver indícios da atuação de quadrilha ou bando em mais de um Estado da Federação. V - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais e venda, inclusive pela internet, depósito ou distribuição do produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado (art. 273 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal). (Incluído pela Lei nº 12.894, de 2013) VI - furto, roubo ou dano contra instituições financeiras, incluindo agências bancárias ou caixas eletrônicos, quando houver indícios da atuação de associação criminosa em mais de um Estado da Federação. (Incluído pela Lei nº 13.124, de 2015) Parágrafo único. Atendidos os pressupostos do caput, o Departamento de Polícia Federal procederá à apuração de outros casos, desde que tal providência seja autorizada ou determinada pelo Ministro de Estado da Justiça. Apesar do longo tempo decorrido desde a prolação do acórdão do Superior Tribunal de Justiça, pouco menos de três lustros, lapso temporal mais que suficiente para que a comunidade jurídica compreendesse o exato alcance do instituto, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro vê-se surpreendido por uma incompreensível, desproporcional e prematura violência institucional. A pretexto de instrumentalizar o possível ajuizamento do referido incidente, a reclamada instaurou um expediente administrativo denominado de “Procedimento Preparatório de Incidente de Deslocamento de Competência”, tombado sob o número 1.00.000.005024/2018-37, cujo nítido objetivo é o de antecipar os efeitos do incidente disciplinados no art. 109, V-A e § 5º, da Constituição da República, sem a prévia manifestação do Superior Tribunal de Justiça. 9 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro Como demonstrado, um requisito indispensável ao ajuizamento do incidente de deslocamento de competência, com o qual o Superior Tribunal de Justiça não tem tergiversado, é “a incapacidade (oriunda de inércia, negligência, falta de vontade política, de condições pessoais, materiais etc.) de o Estado-membro, por suas instituições e autoridades, levar a cabo, em toda a sua extensão, a persecução penal”. Portanto, é justamente este requisito, somado aos dois outros de caráter objetivo (grave violação a direitos humanos e necessidade de assegurar o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais), que motivará a instauração do incidente. Ora, se este é o sopro anímico do incidente, como explicar, então, o fato de a reclamada ter instaurado um procedimento preparatório para o seu ajuizamento poucas horas após a prática dos crimes que o justificaram? A ausência de qualquer resposta convincente a essa indagação dá a exata medida da ilegitimidade da iniciativa que, como é fácil concluir, fere até o postulado da lógica mais elementar. A vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Pedro Gomes foram assassinados no Rio de Janeiro, por volta das 21:30 do dia 14 de março de 2015. Já o denominado “procedimento preparatório de incidente de deslocamento de competência” foi instaurado às 14:34 do dia seguinte. À luz dessas constatações, questiona-se: teria sido detectada inércia ou negligência da investigação nas 18 (dezoito) horas imediatamente seguintes aos crimes? Ou será que a reclamada pretendeu instaurar procedimento administrativo para apurar fato futuro e meramente hipotético? A reclamada não exerce atividade correcional sobre estruturas orgânicas estaduais. Falta-lhe autoridade e competência para tanto. O que a ordem constitucional lhe assegura é a possibilidade de, uma vez identificada situação de 10 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro inércia ou negligência de órgãos estaduais – cujo pressuposto é a existência de um fato qualquer que embase a suspeita -, requerer ao Superior Tribunal de Justiça que delibere sobre a transferência da investigação ou do processo para a Justiça Federal, o que, somente assim, atrairá a atribuição dos membros do Ministério Público Federal. É absolutamente incompatível com o sistema jurídico brasileiro a instauração de uma investigação de contornos “prospectivos”, cujo fim último é o de buscar substratos probatórios que justifiquem a sua própria existência. Da usurpação da competência do Superior Tribunal de Justiça Como acima já ponderado, o ordenamento constitucional pátrio, a partir do advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, passou a contemplar o instituto denominado incidente de deslocamento de competência, que pressupõe requisitos específicos e rigorosos, tocando ao Superior Tribunal de Justiça a competência para apreciar o requerimento formulado nesse sentido e, eventualmente, deferi-lo. Assim sendo, forçoso é convir que a iniciativa da reclamada afronta a própria competência da Corte Superior para deliberar sobre a matéria. Afinal, a expedição do ofício nº 30/2018 - SDHDC/GABPGR, seguida da prática de atos concretos, como, v.g., a designação de cinco membros do Ministério Público Federal para acompanharem a investigação dos crimes e o noticiado agendamento de reunião com o Chefe da Polícia Civil fluminense para o próximo dia 21 de março de 2018, às 09h00, para tratar do tema, importa, na prática, a adoção de um conjunto de medidas que só poderiam ser efetivadas caso fossem 11 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro previamente autorizadas pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede própria e, por óbvio, à luz da garantia do devido processo legal. A “federalização de fato” unilateralmente implementada pela ProcuradoraGeral da República, em última análise, implica absoluta subversão do sistema delineado pelo Poder Constituinte Derivado e, por si só, já é bastante para dar azo ao acolhimento da presente reclamação. Ademais, as medidas até agora adotadas geram sérios desdobramentos e incoerências sistêmicas sob os prismas do controle externo da atividade policial e do princípio do Promotor Natural, sem olvidar, ainda, da usurpação da atribuição dos órgãos correcionais com atribuição. Importante frisar, também, que o caso concreto não versa sobre conflito de atribuição, quer positivo, quer negativo, mas, sim, sobre dissimulada tentativa de exercer atribuição alheia, pontos que serão explorados nos tópicos a seguir. Da usurpação do controle externo da atividade policial Não obstante a singular gravidade dos crimes praticados, o que certamente faz aflorar o espírito colaborativo, a reclamada não detém atribuição para o exercício do controle externo da atividade policial, mais especificamente da atividade investigatória desenvolvida pelas Polícias Civis estaduais. A atribuição do Ministério Público Federal e de suas estruturas orgânicas está adstrita aos assuntos de natureza federal, em que está presente o interesse da União como pessoa jurídica de direito publico interno. No que diz respeito à atividade policial, que tanto pode ser concebida sob o prisma da função pública ou, a depender da corrente doutrinária, do serviço público, a fiscalização 12 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro desenvolvida pela Instituição é direcionada às Polícias Federal, Rodoviária Federal e Ferroviária Federal, referidas nos incisos I a III do art. 144 da Constituição da República. Portanto, possíveis violações a direitos fundamentais decorrentes da atividade policial somente serão alcançadas pela atuação do Ministério Público Federal caso praticadas por esses órgãos. Essa é a ratio essendi do disposto no na Lei Complementar nº 75/1993, mais especificamente em seus arts. 3º, 6º, VII, a, e XIV, 9º, 10 e 14. De forma ainda mais precisa, tem-se o disposto nos seus arts. 38, IV e 39, verbis: “Art. 38. São funções institucionais do Ministério Público Federal as previstas nos Capítulos I, II, III e IV do Título I, incumbindo-lhe, especialmente: (...) IV - exercer o controle externo da atividade das polícias federais, na forma do art. 9º; Art. 39. Cabe ao Ministério Público Federal exercer a defesa dos direitos constitucionais do cidadão, sempre que se cuidar de garantir-lhes o respeito: I - pelos Poderes Públicos Federais; II - pelos órgãos da administração pública federal direta ou indireta; III - pelos concessionários e permissionários de serviço público federal IV - por entidades que exerçam outra função delegada da União”. No que diz respeito às polícias estaduais, a legitimidade para a realização do controle externo é dos Ministérios Públicos Estaduais, como se constata pelo teor dos arts. 25 a 27 da Lei nº 8.625/1993 e de dispositivos congêneres da Lei Complementar nº 106/2003, do Estado do Rio de Janeiro. 13 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro A invasão de atribuições torna-se ainda mais acintosa e gratuita ao se constatar a total ausência de substrato fático que, mesmo ao longe, possa justificá-la. Também aqui, vale lembrar que não há possibilidade de aplicação do disposto no art. 109, V-A e § 5º, da Constituição da República. A uma, porque não houve qualquer pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça, como já esmiuçado no tópico anterior. E a duas, porque não houve omissão ou negligência na apuração de crimes ocorridos há poucos dias, de modo a justificar a sua instauração perante o tribunal competente. O ato praticado invade o espaço de legitimidade da atuação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e, portanto, não pode subsistir, até porque poderá comprometer irremediavelmente quaisquer elementos probatórios para a deflagração no juízo comum competente de ações destinadas à preservação ou responsabilização por eventuais excessos policiais cometidos. Tudo isso sem se perder de vista que, caso efetivada a “federalização de fato” nos moldes pretendidos pela reclamada - isto é, sem a observância de qualquer dos requisitos formais e substanciais previstos no art. 109, V-A, e § 5º, da Lei Maior -, surgirá o grave risco de se lançarem questionamentos a respeito da validade do processo criminal a ser futuramente instaurado, com prejuízos imensuráveis para a efetividade da jurisdição penal e para a própria punição dos responsáveis pelos bárbaros crimes. Acrescente-se que a atuação indiscriminada de Procuradores da República, a qual já começa a se materializar, não só desrespeita as atribuições do Parquet fluminense como revela o animus de fiscalizar a sua atuação, função esta que se insere no rol de atribuições da Corregedoria-Geral do Ministério Público do Estado 14 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro do Rio de Janeiro e, na forma do art. 130-A, § 3º, da Constituição da República, do Corregedor Nacional do Ministério Público. Da afronta ao princípio do Promotor Natural Como ressaltado pela doutrina, o princípio do Promotor Natural consubstancia “princípio implícito no texto constitucional e que deflui das garantias da inamovibilidade dos membros do Ministério Público (art. 128, § 5º, I, b, da CR/1988), da independência funcional de que gozam tais agentes (art. 127, parágrafo único, da CR/1988), do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CR/1988) e do direito de somente ser processado pela autoridade competente (art. 5º, LIII, da CR/1988). No âmbito da Lei nº 8.625/1993, o art. 24, a exemplo do art. 10, IX, “e” e “g”, abriga o princípio do Promotor Natural, evitando a designação de “agentes de encomenda ou de exceção” e os consequentes afastamentos ad nutum, mazelas incompatíveis com o Estado de Direito e a efetividade dos direitos fundamentais. Também se buscou privilegiar o princípio do Promotor Natural ao se exigir que a divisão de serviço nas Promotorias de Justiça seja submetida à prévia deliberação do Colégio de Procuradores (art. 23, §§ 2º e 3º, da Lei nº 8.625/1993) e que as petições e representações formuladas ao Ministério Público sejam objeto de distribuição entre os órgãos de execução (art. 26, § 5º, da Lei nº 8.625/1993)” (GARCIA, Emerson. Ministério Público. Organização, Atribuições e Regime Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 374-375). É evidente que este princípio resta violado quando um extraneus, sequer integrado à Instituição que goza de atribuição, arvora-se em agente competente para a prática de atos estranhos ao seu ofício. É exatamente isto que ocorre no caso concreto. 15 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro A respeito dessa temática, vale transcrever, ainda que parcialmente, trecho de voto do Ministro Celso de Mello, verbis: “O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC 67.759/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, reconheceu a existência do princípio do Promotor Natural em nosso ordenamento constitucional, em decisão que, proferida pelo Plenário desta Corte, está assim ementada: “O postulado do Promotor Natural, que se revela imanente ao sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedação de designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica destinada tanto a proteger o membro do Ministério Público, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu ofício, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados estabelecidos em lei. A matriz constitucional desse princípio assenta-se nas cláusulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição. O postulado do Promotor Natural limita, por isso mesmo, o poder do Procurador-Geral que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a Chefia do Ministério Público de modo hegemônico e incontrastável. (...).” A consagração constitucional do princípio do Promotor Natural significou o banimento de “manipulações casuísticas ou designações seletivas efetuadas pela Chefia da Instituição” (HC 71.429/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO), em ordem a fazer suprimir, de vez, a figura esdrúxula do “acusador de exceção” (HC 67.759/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO). O legislador constituinte, ao proceder ao fortalecimento institucional do Ministério Público, buscou alcançar duplo objetivo: (a) instituir, em favor de qualquer pessoa, a garantia de não sofrer arbitrária persecução penal 16 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro instaurada por membro do Ministério Público designado “ad hoc” e (b) tornar mais intensas as prerrogativas de independência funcional e de inamovibilidade dos integrantes do “Parquet”. A garantia da independência funcional, viabilizada, dentre outras, pela prerrogativa da inamovibilidade, reveste-se de caráter tutelar. É de ordem institucional (CF, art. 127, § 1º) e, nesse plano, acentua a posição autônoma do Ministério Público em face dos Poderes da República, com os quais não mantém vínculo qualquer de subordinação hierárquico-administrativa. Daí a precisa observação, quanto a tal aspecto, de JOSÉ FREDERICO MARQUES (“A Reforma do Poder Judiciário”, vol. I/175, 1979, Saraiva): “O Ministério Público é funcionalmente independente, porquanto, apesar de órgão da administração pública, não é ele instrumento à mercê do governo e do Poder Executivo. (...). Independente é, também, o Ministério Público, da magistratura judiciária, que, sobre ele, nenhum poder disciplinar exerce. Entre o juiz e o promotor de justiça, existem relações de ordem processual tão-somente. Não cabe ao magistrado judicial dar ordens ao Ministério Público, no plano disciplinar e da jurisdição censória (...). (grifei). (STF HC – 99558 Ministro CELSO DE MELLO Relator, informativo 613)”. Do precedente paulista É importante ressaltar não ser essa a primeira vez que o Conselho Nacional do Ministério Público se defronta com fatos inusitados como os aqui descritos. O colegiado apreciou o Pedido de Providências nº 1.00717/2016-53, instaurado a partir de petição protocolizada pelo Procurador-Geral de Justiça e o CorregedorGeral do Ministério Público de São Paulo, em face de condutas praticadas por membros do Ministério Público Federal no contexto do monitoramento das atividades policiais do Estado de São Paulo (doc. 9). 17 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro Naquela oportunidade, os requerentes informaram que a Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão havia instaurado o Procedimento Administrativo de Acompanhamento nº 1.00.000.0013780/2016-78, visando a apurar denúncias de supostas violações de direitos humanos em razão do uso excessivo da força policial durante manifestações ocorridas em via pública. Entendendo acertadamente - falecer competência ao Ministério Público Federal para exercer controle externo sobre a atividade das polícias civil e militar dos Estados, o Parquet bandeirante requereu que o Conselho assegurasse a autonomia funcional de seus membros, desconstituindo-se a instauração do procedimento administrativo de acompanhamento nº 1.00.000.0013780/2016-78, ou determinando-se o encaminhamento dos autos ao Ministério Público de São Paulo. Releva notar, por fundamental, que a liminar pleiteada restou deferida pelo Conselheiro Relator Antônio Pereira Duarte, suspendendo-se, de tal sorte, a tramitação do procedimento administrativo instaurado no âmbito da Procuradoria Geral da República, e determinando-se que os ali requeridos se abstivessem de praticar quaisquer atos no referido expediente, além de outros tendentes a configurar controle externo da atividade das polícias civil e militar paulistas. Até o momento já foram colhidos 8 (oito) votos favoráveis à procedência do pedido, desfecho este que já se mostra irreversível, independentemente do teor do voto ainda pendente de enunciação (doc. 10). Por derradeiro, mostra-se oportuno refletir que o justíssimo clamor popular também partilhado pelos operadores do direito - decorrente dos bárbaros crimes perpetrados não pode comprometer a racionalidade que deve nortear a atuação persecutória estatal, a qual pressupõe, em primeiro lugar, a estrita observância ao modelo constitucional vigente. 18 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro Do pedido Diante do exposto, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro requer que, uma vez recebida e autuada a presente Reclamação para Preservação da Autonomia do Ministério Público, sejam adotadas as seguintes medidas: a) concessão de medida liminar, inaudita altera pars, determinandose a sustação da prática de quaisquer atos de ingerência nas investigações por parte da reclamada ou de designados seus, até o julgamento definitivo do presente procedimento, haja vista a robustez do direito invocado (fumus boni iuris) e o risco imediato de dano à legalidade e à eficiência da atuação do Parquet fluminense e, ainda, à efetividade da persecução penal a ser desenvolvida (periculum in mora); b) ouvida a digna autoridade reclamada, na forma regimental, seja a Reclamação julgada procedente, para o fim de se manter hígida a autonomia do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, assegurando-se ao Promotor Natural do caso o exercício de suas atribuições, no tocante às investigações envolvendo a morte da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Pedro Gomes, obstando-se, em definitivo, qualquer ingerência nas investigações por parte da reclamada. Rio de Janeiro, 21 de março de 2018. José Eduardo Ciotola Gussem Procurador-Geral de Justiça 19